A criança que deixei na estrada

(...mostrar-lhes-ei, de um jeito fatigante, que é possível que eu, dada a necessidade incessante de trabalhar, tenha sido sempre um adulto...)

Dia 12 de outubro de 2025, comemoro (no plantão de 24 horas e com a alegria de um ganhador da loteria) 30 anos de contribuição previdenciária. Mas tenho certeza de que trabalhei muuuito mais. Coincidentemente no Dia da Criança e do trintênio, mostrar-lhes-ei, de um jeito fatigante, que é possível que eu, dada a necessidade incessante de trabalhar, tenha sido sempre um adulto. Recomendo que leiam esta crônica deitados: a leitura vai cansar vocês.

Foto: Arquivo PessoalFlávio José Pereira
Flávio José Pereira

Comecemos pelo município de Simões, neste meu Piauí! Fui agricultor (trabalhadorzinho rural: a ilustração da matéria dá uma ideia do quão jovem eu era). Na caçamba de uma caminhonete, recebendo aquela adorável cruviana de bater os queixos, éramos levados, durante a madrugada,  ao Sítio Poço Cercado, propriedade do Senhor Avany Josias – para plantar, capinar, colher. Apanhar algodão era o que eu mais detestava. Na verdade, o que havia de bom nisso tudo era só a água fresca da cabaça e a rapadura com farinha de mandioca.

Na época da fartura de abóbora, eu ajudava a carregar os caminhões. Adivinha qual era a recompensa! Abóbora... Pelo menos, nesse período, eu não passava fome. Abóbora "até umas horas", inclusive com leite da casa de Dona Maria Nunes. Minha mãe, Ostanila, lavava louças em sua residência e, como pagamento, ganhava laticínios, incluindo coalhada (delícia!).

Um dos cargos mais longevos foi “mensageiro do posto telefônico”. Pouquíssimas famílias possuíam aparelho de telefone: era artigo de luxo. Então as pessoas que viviam em outras cidades, que em geral tentavam fugir da pobreza, faziam ligações para esse posto; a telefonista, que normalmente conhecia quase todo o mundo, calculava um tempo a fim de que o interlocutor do lado oposto retornasse a chamada (seria impagável esperar na linha); eu – um menino feio, fedorento, malamanhado, porém muito esperto – saía em disparada para chamar o destinatário. Um e outro ia de animal, de bicicleta, de motocicleta; entretanto nunca me deram uma carona de volta (guardo mágoa não!).

Tenho muitas recordações desse ofício. A primeira, ruim: eu odiava acordar cedo. No entanto me lembro da gentileza das colegas. Algumas até compartilhavam seu café da manhã comigo. Apolônia de Duoso e Socorrinha de Dona Anita, por exemplo, me davam pedaços de beiju com ovo. Quando não havia ninguém para ser acionado, eu limpava os telefones com álcool, matava moscas com uma régua, brincava com Éverton (neto de Zé do Jequi), que vivia ali perto. Banhávamos na chuva, depois eu ia me aquecer na cabine de chamadas. 

No tédio, eu estudava um pouco. Em determinada ocasião, saí correndo do expediente para uma competição que aconteceu na Praça do Abrigo: Redação (a inflação era o tema) e Revolução Francesa – premiaram-me com dois troféus (um prato de feijão com arroz teria sido melhor). Também ficava lendo as listas telefônicas ou usava a do Rio de Janeiro como travesseiro para decansar no banco de madeira. Ah! para finalizar, certa vez liderei um pequeno levante para requerer, sem sucesso, uma bicicleta ao prefeito Valdecy. Levei comigo dois outros estafetas – Eduardo de Sebastião Bento e Marquinhos de Madalena. Percebe-se que sempre tive um ativismo que, mais tarde e causado por outros políticos, me custou caro: não nomeação em concurso federal, remoções, perseguições diversas e assassinato de reputação.

Costumeiramente, na falta de oportunidades, eu pedia aos rapazes que me pagassem moedas para dar recado às moças (“fazer um mandado”). Raul Alencar, servidor do Funrural (INSS), me pediu que entregasse um bilhete à sua namorada, Lena de Seu Rodrigo. Para demonstrar inteligência, eu li o papel, decorei os dizeres, verbalizei-os ao alvo e devolvi a cartinha ao remetente. Tenta imaginar a reação do bom homem! Nessa época, acabei adicionando a meu minguado léxico dois novos vocábulos: privacidade e baitola (a este último, jamais ousem pronunciá-lo!) e ainda consegui um emprego – office boy. Não tinha tal nomenclatura. O que sei é que eu ia, com muito gosto, aonde meu generoso patrão me mandava. Ainda com esse empregador brincalhão, cursei datilografia e me tornei instrutor de sua escola.

Juntamente com Naziozênio, contribuí para a arborização urbana e a produção de mudas de caju destinadas  ao campo (acho que eram projetos da Emater). Fui o faz-tudo da Lanchonhete Ki Kanto, cujo proprietário era Ciro, esposo de Elba. Em outra fase da vida, aos sábados, quando eu não estava atendendo na banca de frutas de Seu Simão, que vinha do Pernambuco, ofertava aos passantes produtos organizados no chão do "Beco da Facada", auxiliando Aderbaldo de Teobaldo na venda de açúcar, café, feijão, arroz, óleo, macarrão etc. Ocasionalmente, Luísa de Amadeusinho me pagava para lavar a caixa-d’água. E, em um fatídico domingo, para Chica de Zé de Matias, fui comercializar picolé no Povoado Curralinho (um fracasso!).

Claro que só exerci todas essas atividades após a morte de meu pai, José de Acelino. Um homem de muitas habilidades manuais, como pedreiro, a saber. Antes de ele contrair tuberculose, eu costumava ajudá-lo após sair da escola. Achava divertido misturar areia com cimento; fazer um monte em forma de pirâmide; abrir um buraco com a enxada no meio da mistura; pôr água no centro; mexer a massa. Era “maneiro” também lançar tijolos do chão para o pedreiro posicionado no andaime. Eu disse lançar, e não rebolar um tijolo! Impressionante ele planando depois de arremessado com força calculada e jeito.

Nos períodos de estiagem, colhia vagens de algaroba para alimentar bovinos e caprinos dos criadores. Era comum jogar varas para derrubar os frutos. Outro dia, tive o azar de receber de volta uma lasca de madeira que estava pendurada na algarobeira – o que me rendeu um corte profundo no dorso do pé direito: o diabo de um moleque pobre que nem eu passara antes de mim.

Eu era um exímio catador de... qualquer coisa! Só precisava existir comprador. De panelas velhas (de cobre, ferro ou alumínio); de garrafas de refrigerante e de cerveja. Fazia-se necessário lavá-las antes de as entregar ao contratante (usei essa palavra só para dar um ar de formalidade). Alexandre do Posto, a quem sempre chamei Tio Alexandre, efetuou alguns negócios comigo (grande fornecedor eu era! do tipo que abastece as prefeituras! rsrs).

Para arranjar uns trocados, com tudo eu labutava. Até partidas de sinuca apostadas contra Anaildo de Seu Tiago no Bar de Jacinto de Belinha! Certa feita, auferi uma mixaria em um concurso de dança no Circo do Fumanchu (não aquele famoso!). 

Por falar em circo, eu, com outros garotos, caminhávamos pelas ruas atrás do palhaço para sermos agraciados com a oportunidade incrível de apreciar a poeira e as adoráveis apresentações sob a lona quente e provar, ou ao menor ficar só na vontade, as guloseimas vendidas na entrada. Mesmo na tenra idade, eu "curtia", inclusive, a graciosidade das dançarinas (pernas incríveis!). Enfim, para toda essa magia acontecer, precisávamos obter um bilhete respondendo e completando, com o maior entusiasmo possível, as mais puras, sensatas e coerentes frases proferidas pelo saltimbanco: “Hoje tem espetáculo? Tem, sim, senhor! E tem mulher bonita? Tem, sim, senhor! Pompeu, Pompeu! Tua mãe morreu! E a cabeça do palhaço? Urubu comeu!”. Foi daí que veio a minha inspiração para ser escritor (sem comida, qualquer um sobrevive! sem arte, duvido!).

No entanto, determinado dia, atrasado para a seleção daqueles que comporiam a trupe, não arrumei ingresso (ódio!). À noite – eu não perderia por nada o show! –, tentei entrar por baixo do arame que protegia o coliseu; o vigia disse “peguei!”; tentando fugir, enganchei-me na cerca. Resultado: uma cicatriz flagrante no lábio superior e uma paixão ardente pelo picadeiro.

Fui crescendo, e as responsabilidades aumentando. Com alguns amigos, fundei a Rádio Veredas FM, tornei-me seu gerente e primeiro locutor (acho que nunca repararam em minha língua presa quando eu anunciava La solitudine, com Renato Russo). Para ser sincero, nem sei se havia nem sequer um ouvinte; só sei que eu sentia no âmago a glória que a radiodifusão ostentava antigamente.

Em Araripina, no interior do Pernambuco, onde fui cursar Ensino Médio e Letras, trabalhei como auxiliar de recepcionista, recepcionista, auxiliar de secretaria e faturista na extinta Casa de Saúde São José, com Doutor Pedro, Dona Mary, Valéria Bandeira e inesquecíveis pessoas. Lá também, exerci o magistério nos colégios Padre Luiz Gonzaga e Destak.

Morando em São Paulo, “terra onde filho chora e mãe não vê” (não existia WhatsApp), fui balconista no mercadinho de meu tio Ailton de Ameliano e babá de sua filha caçula (pelo menos servia-lhe o desjejum todas as manhãs!); auxiliar de apontador – labor que me proporcionou a satisfação de conhecer Albaetson (encarregado da construção), Zé Casimiro (pedreiro), Seu Benedito (mestre de obras), Jadi (eletricista) e um engenheiro civil – homem mais lindo que vi pessoalmente (nem tudo foi feiura em minha vida). Aprovado na Polícia Militar (sonho: ROTA), tive a rota alterada para o Nordeste por 1,64m de altura. 

Estando no Piauí (“É feliz quem vive aqui!”), conquistei aprovação em alguns certames e assumi professor e policial penal. Na condição de lente, passei por várias escolas e cursos preparatórios (demitido por nenhum!). Durante cinco anos, atuei na Universidade Estadual do Piauí. Em Simões, fui, orgulhosamente, professor de meu professor Carmélio. No campus de Picos, além de ilustres acadêmicos, conheci as funcionárias Candinha e Meirinha. Fora da instituição, essas recatadas moças e eu tomamos um bocado de cerveja (mas essa história fica para o próximo texto, pois este é sobre DEVER, não LAZER!).

Estreei como representante comercial de uma casa de peças de automóveis (um desperdício!). Escrevi livros, tentei vendê-los; compus letras de músicas, sem negócio algum; redigi minutas de biografias, com zero perspectiva de contrato. E eis-me na insistência (ou resistência), redigindo mais uma crônica para mais um livro que não terá saída.

Se você chegou até aqui, só posso imaginar que o motivo seja tão somente curiosidade. Quem sabe espera que eu diga que sou velho demais. Só que não! A verdade é que nasci trabalhando. Trinta anos é o que há de registro. Batalhei bem mais do que isso. 

Portanto, caso seu nome tenha sido mencionado aqui e queira fazer uma reparação histórica, sugiro que me faça um pix (chave no rodapé). Se, por outro lado, sentiu-se lesado (o que, do fundo de meu coração, foi uma homenagem!) e, consequentemente, esteja pensando em pleitear na justiça uma indenização por supostos danos morais, a outra sugestão é que nem pense nisso, porque não tenho um vintém! Conforme dizem, trabalhei tanto que não tive tempo para ganhar dinheiro.


P.S.: chave pix aleatória 97ce468a-595e-4aef-afe7-6e07f17d2e07

Foto: ReproduçãoEscritor Flávio José Pereira da Silva
Escritor Flávio José Pereira da Silva

Flávio de Ostanila é professor de Língua Portuguesa, bacharel em Direito, escritor e jornalista.

Fonte: JTNEWS

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