Sermão do Bom Ladrão

Pe. Antônio Vieira e a "Arte de roubar"

Vendo em alguns meios de comunicação a escandalosamente suposta roubalheira na Secretaria de Saúde do Piauí, ocorreu-me, com receio de ser crucificado aqui no Império, o sermão corajosamente proferido em 1655 — na Igreja da Misericórdia (Conceição Velha, Lisboa), diante de Dom João IV e sua corte —, advertindo o rei sobre o pecado da corrupção pela cumplicidade. Se bem que, no caso da nossa realeza, não sei se sua prestação de contas com Deus se deveria só por conluio! Mas quem sou eu, um reles plebeu, para supor qualquer contravenção de Sua Alteza?! 

Foto: Reprodução / InstagramArte de Roubar
Arte de Roubar

"Antigamente os que assistiam ao lado dos príncipes chamavam-se laterones. E depois, corrompendo-se este vocábulo, como afirma Marco Varro, chamaram-se latrones. E que seria, se assim como se corrompeu o vocábulo, se corrompessem também os que o mesmo vocábulo significa? O que só digo e sei, por teologia certa, é que em qualquer parte do mundo se pode verificar o que Isaías diz dos príncipes de Jerusalém: 'Principes tui socii rurum' (Teus príncipes são companheiros dos ladrões). E por quê? 

São companheiros dos ladrões porque os dissimulam; são companheiros dos ladrões porque os consentem; são companheiros dos ladrões porque lhes dão os postos e poderes; são companheiros dos ladrões, porque talvez os defendam; e são finalmente seus companheiros porque os acompanham e hão de acompanhar ao Inferno, onde os mesmos ladrões os levam consigo".

"Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão; e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza; o roubar com pouco poder faz os piratas; o roubar com muito, os Alexandres. O ladrão que furta para comer não vai nem leva ao Inferno: os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões de maior calibre e de mais alta esfera. 

Não só são ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles que roubam cidades e reinos: os outros furtam debaixo do seu risco; estes, sem temor nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados; estes furtam e enforcam". E para a alegria das vítimas, disse mais tarde: "Nem os reis podem ir ao Paraíso sem levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao Inferno sem levar consigo os reis". Ao menos isso — com essa expressão aparentemente reconfortante, conclui ao artigo José Paulo Cavalcanti Filho, advogado, de quem furtei fragmentos de texto.

Seguindo no crime, a exemplo de  alguns nobres piauienses, surrupio frases, orações e períodos do economista Marcel Solimeo acerca da retórica instigante e sempre atual nas palavras do Padre Antônio Vieira, o qual, por sua vez, menciona que — embora o rei não possa saber a priori se um indicado vai ou não roubar — para que não seja responsável pelos roubos, recomenda-se que as pessoas sejam nomeadas apenas por “merecimento”, o que, no geral, segundo ele, não acontece. Aquele nomeado “sem merecimento”, diz Vieira, não é apenas ladrão, senão ladrão e ladrão: uma vez porque furta o ofício, e outra vez porque há de furtar com ele. O que entra pela porta do “merecimento” poderá vir a ser ladrão, mas os que não entram por ela já o são.

Continua: “Uns entram pelo parentesco; outros, pela amizade; outros, pela valia; outros, pelo suborno; e todos, pela negociação... e quando se negocia não há mister outra prova... agora será ladrão oculto, mas depois ladrão descoberto”.

Referindo-se a um relatório apresentado por São Francisco Xavier sobre a situação na Índia, e que segundo ele ocorria nas demais colônias portuguesas, Vieira afirmou que os seus governantes conjugam “por todos os modos o verbo rapio, porque furtam por todos os modos da arte, não falando em outros novos e esquisitos”.

E segue: “Começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo imperativo, porque, como têm o mero e misto império, a todo ele aplica despoticamente as execuções da rapina. Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam quanto lhes mandam, e, para que mandem todos, os que não mandam não são aceitos".

"Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem e, gabando as coisas desejadas aos donos delas, por cortesia, sem vontade as fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito, e basta só que ajuntem a sua graça, para serem, quando menos, meeiros na ganância."

"Furtam pelo modo potencial, porque, sem pretexto nem cerimônia usam de potência. Furtam pelo modo permissivo porque permitem que outros furtem, e estes compram as permissões. Furtam pelo modo infinitivo, porque não tem fim o furtar com o fim do governo, e sempre lá deixam raízes em que se vão continuar os furtos."

"Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas, porque a primeira pessoa do verbo é a sua; as segundas, os seus criados; e as terceiras, quantas para isso têm indústria e consciência." 

"Furtam juntamente por todos os tempos, porque do presente — que é o seu tempo — colhem quanto dá de si o triênio; e para incluírem no presente o pretérito e o futuro, do pretérito desenterram crimes de que vendem perdões, e dívidas esquecidas de que se pagam inteiramente; e do futuro empenham as rendas e antecipam os contratos, com que tudo o caído ou não caído lhes venham a cair nas mãos."

"Finalmente, nos mesmos tempos que lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, plusquam perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse."

"Em suma, que o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar para furtar. E quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles, como se tivessem feito grandes serviços, tornam carregados de despojos e ricos, e elas ficam roubadas e consumidas."

"Não sei como não reparam os príncipes, em matéria de tanta importância, se são ladrões! De nenhum modo se pode consentir nem dissimular que continuem no posto e lugar onde o foram, para que não continuem a  ser (ladrões)”.

Foto: Arquivo pessoalFlávio José Pereira da Silva [Flávio de Ostanila] é policial penal, escritor, bacharel em Direito e professor de Língua Portuguesa
Flávio de Ostanila

Flávio de Ostanila é professor de Língua Portuguesa, bacharel em Direito, escritor e jornalista.

Fonte: JTNEWS

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