Quem deve investigar o crime de homicídio praticado por militar contra civil?

A Polícia Judiciária Civil ou a Polícia Judiciária Militar? Assuero Stevenson Pereira Oliveira, promotor de Justiça Militar escreve fundamentadamente acerca do tema

O tema tem sido objeto de discussão doutrinária, de um lado os escritores e juristas que acenam exclusivamente no sentido de a apuração ser procedida pela polícia militar e do outro os que posicionam-se com argumentos contrários.

Foto: MPPI/DivulgaçãoAssuero Stevenson
Assuero Stevenson Oliveira - é promotor de Justiça Militar do Piauí

Atualmente a discussão em epígrafe parece ter sido esclarecida [segundo o 'mundo' de quem subscreve a matéria], levando-se em consideração a interpretação que emerge do art. 125, § 4º da Constituição Federal de 1988, que expressa-se textualmente: “Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.”

O tema já foi discutido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2016, quando o Ministro Felix Fischer entendeu aplicável a teoria dos poderes implícitos que emerge da competência de processar e julgar, o poder/dever de conduzir administrativamente inquéritos policiais.

Claro que, ao ser definido pela lei maior a competência para julgar ser do Tribunal Popular do Júri, quis o legislador afastar a legislação castrense [da justiça militar] e, por consequência, o rito estabelecido no Código de Processo Penal Comum, inclusive quanto à condução de inquéritos policiais, previsto no art. 4º do Código citado.

Foto: Lucas Teles/JTNewsSede da Polícia Militar (1)
Quartel Geral da Polícia Militar do Piauí: mortes praticadas por militar contra civil ficam sob investigação da Polícia Civil

Na mesma linha de raciocínio, é importante registrar a decisão recentíssima do STJ em que foi relator, o Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, em 3 de março de 2020, que diz expressamente:

Ementa (Processo Nº 2020/0006374-0 - PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS.  INVESTIGAÇÃO DE SUPOSTO CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA. MILITAR CONTRA CIVIL. ART. 125, § 4º, DA CF. ART. 9º DO CÓDIGO PENAL MILITAR. ART. 82 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI. INQUÉRITO CONDUZIDO PELA POLICIAL CIVIL E DUPLICIDADE DE APURAÇÃO. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. RECURSO IMPROVIDO.

1. A competência da Justiça Militar tem previsão constitucional, ressalvando-se a competência do Tribunal do Júri nos casos em que a vítima for civil, conforme art. 125, § 4º, da CF. Dessa forma, assentou a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, que, nesses casos, o inquérito pode ser conduzido pela Polícia Civil, pois, aplicada a teoria dos poderes implícitos, emerge da competência de processar e julgar, o poder/dever de conduzir administrativamente inquéritos policiais (CC n. 144.919/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, Terceira Seção, julgado em 22/6/2016, DJe 1º/7/2016).

Foto: Flickr/STJMinistro do STJ
Ministro do STJ, Reynaldo Soares decidu que a Polícia Civil deve investigar crime de homicídio de militar contra civil

2. Por outro lado, a existência de concomitante inquérito promovido pela Polícia Militar, com o intuito de investigar a prática de suposta transgressão militar/crime militar, não existe o apontado constrangimento ilegal, pois, em caso de configuração de crime militar, nos termos do art. 102, "a", do Código de Processo Penal Militar, o feito será cindido.”

Por conseguinte, segue o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça a aplicabilidade do caso McCulloch v. Maryland, considerado entre as mais importantes lides da Suprema Corte dos Estados Unidos, responsável pela consagração da “teoria dos poderes implícitos”.

A doutrina no Brasil aceita o conceito de competência implícita, que se “refere à prática de atos ou atividades razoavelmente considerados necessários ao exercício de poderes expressos, ou reservados.” (SILVA, p. 480)

A decisão norte-americana foi utilizada também pelos ministros do STF Cezar Peluso (BRASIL, 2013a, p.10) e Celso de Mello (BRASIL, 2003b, p.57, 2005b, p. 1.276, 2005c, p.447, 2011b, p. [29], 2013b, p. [11], 2013c, p. [70], 2014a, p. [8], 2014c, p.96).

Destaco, ainda, o voto do Ministro Reynaldo que assim manifestou-se acerca do assunto:                                                                                                    

“Ora, é necessário realizar uma interpretação harmônica entre a Constituição Federal e o Código de Processo Penal Militar para dirimir tais conflitos definitivamente.

Na jurisprudência resta concretizado que o foro competente para processar e julgar os crimes dolosos contra a vida praticado por militar em face de civil é da justiça comum.

Desta forma, sendo da competência do juiz de direito o processamento e julgamento de tal natureza, não há dúvida que será também o juízo administrativo competente para conduzir o inquérito policial, ainda que com funções limitadas de verificar regularidades procedimentais, com raras exceções legais de decisões (prisão temporária, busca e apreensão, arquivamento, etc.).

Tem-se como fundamento da conclusão supra, a aplicabilidade da teoria dos poderes implícitos, importada do Direito Norte Americano, consagrada no caso (case) McCULLOCH v. MARYLAND, quando John Marshall, Presidente da Suprema Corte Americana, decidiu sobre os poderes dos estados federados frente ao governo federal, que em síntese define que do poder consagrado pela Constituição Federal emergem implicitamente demais poderes capazes de instrumentalizar o poder previsto constitucionalmente, teoria explorada de forma ímpar no voto do Ministro Celso de Mello no HC n. 87.610/SC.

Desse modo, não há como dissociar a fase investigativa da fase processual, de modo a se criar um juízo de inquérito e outro de processo, como se o sistema processual (incluído pré-processual) brasileiro fosse misto ou francês.

No sistema processual misto (francês), tem-se a figura do juiz instrutor e do juiz julgador, exposto por Renato Brasileiro de Lima, na obra Manual de Processo Penal, 3ª Edição, 2015, Editora JusPODIVM, folha 41:

"A primeira fase é tipicamente inquisitorial, com instrução escrita e secreta, sem acusação e, por isso, sem contraditório. Nesta, objetiva-se apurar a materialidade e autoria do fato delituoso. Na segunda fase, de caráter acusatório, o órgão acusador apresenta a acusação, o réu se defende e o juiz julga, vigorando, em regra, a publicidade e a oralidade".

Não há como permitir que inquéritos policiais que versam sobre crimes dolosos contra a vida praticado por militar em face de civil continuem sendo conduzidos pela Justiça Castrense, porque não é dela a competência constitucional de processar e julgar a ação penal.

Imperioso anotar que, nesta fase, vigora o princípio do in dubio pro societate e não comporta valorações por juízes especializados, como se percebe com alguns arquivamentos de inquéritos policiais militares, uma vez que se trata de usurpação de possível competência do juízo da causa.”

Assim sendo, a regra é que a Justiça Comum conduza o Inquérito Policial administrativamente e, caso perceba claramente não se tratar de delito doloso contra a vida, remeterá o Inquérito Policial ao Juízo Militar do processo, e não o inverso. 

Portanto, com respeito e a devida vênia, não concordo com a parte da doutrina que analisa a possibilidade de a investigação ser da polícia militar, pois quando a Constituição, repetindo mais uma vez, definiu a competência pelo júri, claro que, implicitamente, atribuiu à polícia civil a investigação.

Agora, o meu entendimento é no sentido da exclusividade para apurar ser da polícia civil. Não considero, portanto, qualquer legislação infraconstitucional a justificar. “Sou claro porque sou pouco profundo.”

Portanto, o entendimento agora não é solitário; continua sendo do gordinho que aumentou o peso ainda mais durante pandemia (risos).

Assuero Stevenson Oliveira é promotor de Justiça em Teresina no Piauí.

Fonte: JTNEWS

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