Em decisão histórica, Argentina aprova direito de mulher decidir sobre aborto

Agora, o país se torna o primeiro grande da América Latina a legalizar a interrupção da gravidez

Após uma aguardada sessão que durou 12 horas, o Senado da Argentina aprovou, na madrugada desta quarta-feira (30/12), o direito de a mulher optar pelo aborto até a 14ª semana de gestação. A decisão histórica teve 38 votos a favor e 29 contra, além de 1 abstenção.

Foto: Ronaldo Schemidt/AFPAtivistas pró-aborto acompanham votação de projeto de lei no Senado que legaliza interrupção da gravidez
Ativistas pró-aborto acompanham votação de projeto de lei no Senado que legaliza interrupção da gravidez

A comemoração do lado de fora do Congresso foi grande, com pulos, abraços e choro de alegria de militantes feministas, que também soltaram fogos de artifício na cor verde, símbolo da luta pró-aborto.

Até então, o procedimento era permitido em caso de estupro ou risco de morte da mãe. Agora, a Argentina se torna o primeiro país grande da América Latina a legalizar a interrupção da gravidez. Na região, a prática já era autorizada em Cuba, Guiana, Guiana Francesa, Uruguai, Porto Rico, na Cidade do México e no estado de Oaxaca — no México, esse tipo de legislação é decidido em nível regional.

Há dois anos, durante a gestão de Mauricio Macri, um presidente de centro-direita, um projeto de lei semelhante foi derrotado no Senado por uma diferença de apenas sete votos. Agora, além de ter sido vitoriosa, a proposta era uma promessa de campanha do atual líder do país, Alberto Fernández, que certamente vai chancelar a decisão do Congresso.

"O aborto seguro, legal e gratuito é lei. Hoje somos uma sociedade melhor, que amplia direitos às mulheres e garante a saúde pública", escreveu o chefe de Estado argentino no Twitter.

Do lado de fora do Congresso, a multidão de apoiadores da legislação se empolgava com o final da jornada. Enquanto as favoráveis à legalização começavam a comemorar, os contrários seguiam cantando, rezando e agitando bandeiras argentinas. Mesmo antevendo a derrota, permaneceram no local, alguns inconformados, pedindo intervenção da Justiça e gritando que os senadores eram "assassinos".

A sessão no Senado foi comandada por Cristina Kirchner, ex-presidente (2007-2015) e atual vice de Alberto Fernández. Cada parlamentar tinha de 10 a 15 minutos para discursar, o que fez com que a votação ocorresse apenas às 4h06 desta quarta, numa sessão que começou às 16h09 do dia anterior.

A proposta já havia sido aprovada pela Câmara de Deputados no dia 11. Assim como naquela ocasião, dois acampamentos —um "verde", cor adotada pelas favoráveis à liberação, e um "celeste", de contrários à aprovação— foram montados do lado de fora do Congresso para acompanhar a votação por telões.

Os grupos enfrentaram calor intenso. Às 17h desta terça, quando a concentração começou a ganhar força, a sensação térmica era de 35º C. No começo da noite, ainda estava acima dos 30º C.

As medidas de prevenção contra o contágio do Coronavírus não foram respeitadas. Muitos dos manifestantes estavam sem máscaras ou as usavam na altura do queixo. Durante os discursos mais exaltados, juntavam-se para aplaudir, dançar ou vaiar. A aglomeração era a regra.

"Aborto legal, no hospital", gritavam as "verdes". "É a quarta vez que acampo pelo aborto e pelas mulheres argentinas. Só saio daqui dançando", disse Carolina Benedit, 26 anos, antes do resultado da votação. Ela disse ter chorado muito quando o Senado rejeitou a legalização do procedimento em 2018.

Foto: Matias Baglietto/ReutersManifestantes antiaborto protestam contra projeto de lei que legaliza interrupção da gravidez durante votação no Senado
Manifestantes antiaborto protestam contra projeto de lei que legaliza interrupção da gravidez durante votação no Senado

Do lado celeste, muitos levavam bandeiras argentinas e cartazes com dizeres contra o governo. Havia padres fazendo pregações, rodas de oração e um espaço do gramado foi usado para simular um pequeno cemitério, com cruzes fincadas. Havia, ainda, um grande feto de papelão com manchas de sangue.

Na manhã de terça (29/12), o papa Francisco, argentino, manifestou-se: "O filho de Deus nasceu descartado para nos dizer que toda pessoa descartada é um filho de Deus. Veio ao mundo como um bebê vem ao mundo, débil e frágil, para que possamos acolher nossas fragilidades com ternura".

Ao jornal argentino Clarín uma opositora que estava em frente ao Congresso, Sara de Avellaneda, disse que os contrários à legalização "não são invisíveis" e que "nem tudo é uma maré verde". Esta lei é inconstitucional e sua implementação não será fácil."

No começo da sessão, a estimativa era de que a votação tivesse 34 votos a favor e 32 contra, com duas ausências — as do ex-presidente Carlos Menem (1989-1999), que está hospitalizado em estado grave, e de José Alperovich, suspenso enquanto responde processo por assédio sexual.

Havia quatro parlamentares indecisos. Por volta das 18h30, um deles, a senadora Silvina García Larraburu, que havia votado contra a aprovação há dois anos, fez um discurso favorável ao projeto.

A partir daí, os "verdes" se animaram, enquanto aumentava a preocupação entre os "celestes". A frente da casa de García Larraburu logo encheu-se de manifestantes antiaborto. Logo, mais dois indecisos também indicaram voto a favor do projeto de lei, e a tendência de vitória da aprovação foi se fortalecendo.

A luta das mulheres argentinas pelo aborto ocorre há décadas, mas ganhou força em 2015, com a formação do grupo Ni Una Menos, que passou a organizar marchas e atos pelo fim da violência contra a mulher e por uma legislação que oferecesse o direito de interromper a gravidez por vontade própria.

"Depois de tantas tentativas e anos de luta que nos custaram sangue e vidas, hoje finalmente fizemos história. Hoje deixamos um lugar melhor para nossos filhos e filhas", disse Sandra Luján, uma psicóloga de 41 anos que participou da vigília ao lado de milhares de jovens com lenços verdes.

Durante a gestão de Cristina Kirchner, a proposta pró-aborto não avançou porque a então presidente era contrária à pauta. Em 2018, já senadora, no entanto, votou a favor da legislação.

Afirmou que havia mudado de ideia por ter sido convencida pelas meninas que via abraçando a causa nas ruas, em protesto, o que, diz ela, a fez pensar no futuro de suas netas.

O projeto de lei aprovado contempla, ainda, uma cláusula para evitar judicializações, que atrasam a decisão e podem inviabilizar a realização do procedimento. De acordo com a nova regra, o aborto deve ser feito em até 10 dias depois de o pedido ter sido feito pela requerente.

Médicos poderão alegar objeção de consciência, mas terão de reportar o caso ao hospital ou centro de saúde em que trabalham e transferir a paciente a uma unidade que faça o procedimento dentro do prazo.

Paralelamente, os senadores também aprovaram o projeto dos "Mil Dias", um conjunto de políticas de contenção e assistência financeira, médica e psicológica a mulheres mais pobres que desejem continuar com a gestação, mas não têm condições de manter a gravidez.​

O governo calcula que sejam realizados entre 370 mil e 520 mil abortos clandestinos por ano no país, cuja população é de 45 milhões de habitantes. Desde a restauração da democracia, em 1983, mais de 3.000 mulheres morreram devido a abortos realizados sem segurança.

Fonte: Folha de S. Paulo

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