Viver: uma questão de arte; por Flávio de Ostanila

"Alguns dirão que isso é 'frescura'. A tais indivíduos secos feito o deserto, só posso me compadecer de que tanta aridez n'alma não lhes permita sentir a brisa que pode soprar na mais árdua missão."

Sempre me senti um artista. Quando criança, em Simões, interior do Piauí, fazia malabarismo, dava cambalhotas, seguia o palhaço pelas ruas a fim de ganhar um ingresso para o show da noite: "Hoje tem espetáculo? Tem, sim, senhor! E tem mulher bonita? Tem, sim, senhor!".

Foto: Reprodução / Redes Sociais"Retirantes", de Portinari, 1944.
"Retirantes", de Portinari, 1944.

Outro dia, atrasei-me para a escolha dos garotos que seguiriam o saltimbanco sobre suas gigantes pernas de pau e acabei não ganhando bilhete de acesso ao circo. Tentei entrar sem pagar; fui surpreendido pelo vigilante e me enrosquei na cerca de arame farpado. Resultado: uma cicatriz no lábio superior. Mas isso não ofuscou meu brilho como dançarino de picadeiro. Até ganhei dinheiro por vencer um concurso: "Menina Veneno", de Ritchie.

Assim que a trupe circense levantava lona em partida para o próximo município, outras crianças e eu montávamos nossas próprias apresentações nos monturos cercados por papelões e sacos de estopa. Havia as dançarinas, o palhaço e eu, o equilibrista.

O tempo foi passando, e quando a fome dava uma folga, montava baterias com panelas velhas catadas no lixo e varetas como baquetas  Depois aprendi com um amigo da infância a fazer malabares com três pedras e assoviar bem alto usando quatro dedos. 

Em seguida, lembrando a dupla "uti" e "frui" de Santo Agostinho, dei início a um processo de aprendizagem de coisas admiravelmente inúteis, como imitar vozes de personagens da televisão e de cantores: Barney, dos Flintstones ("Oh, Fred!"); Darth Vader ("I am your father"); Elvis Presley ("Unchained Melody"); Ray Charles ("What a Wonderful World"); Adriana Arydes ("Pra sempre vou te amar"); Belchior ("Tudo outra vez"); Zé  Ramalho ("Entre a serpente e a estrela"); Biquíni Cavadão ("Vento, ventania"); Dalto ("Muito estranho"); Nelson Gonçalves ("Naquela mesa")... e por que não Pabblo Vittar?! ("São amores/Amores que matam/Amores que ferem/Amores que doem/Amores que amargam").

É certo que hoje existem pessoas enriquecendo com inutilidades; acho, entretanto, que nem minha modesta crônica, nem "A caixa de brinquedos' de Rubem Alves arriscariam discorrer acerca desse fenômeno.

Continuo. Fui o primeiro locutor da Rádio Veredas FM, em minha cidade. Achava fascinante encerrar a programação noturna com "La solitudine", interpretada por Renato Russo. 

Em São Paulo, trabalhando na construção civil, vi amontoados de tijolos, ferros, cimento e capacetes de todas as cores (observe a sinédoque!) — um aparente caos darem origem a prédios geometricamente perfeitos.

Cursando Direito em Picos, de volta ao Piauí, impressionavam-me a busca pelo equilíbrio, o embate para se estabelecer o justo, a liturgia jurídica, os brocardos ("Nulla poena sine culpa"), as vestes talares, as formas de tratamento.

Já em outra área, não nessa ordem,  animavam-me todos os elementos da versificação — ritmo, rima, métrica. Veja  o caso de "coa" em lugar de "com a"! Recurso chamado de ectlipse, que consiste na supressão do "m" final diante da vogal "a" inicial. Em certas regiões, sobretudo em São Paulo, a redução fica ainda mais intrigante com a elisão realizada involuntariamente pelo falante ("Falei coa a menina" vira "Falei ca mina"). No caso de "mina", julgo uma abreviação que se deu por síncope.

Na verdade, no campo das Letras, tudo é encantador. A magia da literatura, o diálogo com a pintura e e a música subvertem a tristeza. E essa releitura da realidade — com figuras de linguagem, função poética, cores, sons, luz — nos faz gostar de obras como "Lembranças de morrer", de Álvares de Azevedo; da tela "Retirantes", de Portinari; da música "Via Láctea", de Renato Russo. Isso não é apreciar a melancolia, pois esta a arte a subjugou, encobriu-a com um manto de formosura. 

Até o purismo gramatical, que sugere infindáveis regras, tem um charme arrogante. Com a benção de Evanildo Bechara, deixe-me explicar a declaração! 

Período composto por subordinação: "deixe" é oração principal com sujeito desinencial equivalente a "você", este indicado pelo verbo no imperativo formado a partir da terceira pessoa do presente do subjuntivo; "me explicar a declaração!", oração subordinada substantiva objetiva direta reduzida de infinitivo; "me", embora pronome átono, devido à relação com o verbo causativo "deixar", exerce função sintática de sujeito do infinitivo "explicar", o qual, por sua vez, sendo transitivo direto, exige como complemento o objeto direto "a declaração"; e compondo a complementação verbal, tem-se o adjunto adnominal "a".

Se eu dissesse que escrevo simetricamente na lousa de uma a outra ponta e que não deixo um risco no quadro após a aula, algum invejoso (ou psiquiatra) diria que tenho transtorno obsessivo compulsivo. Prefiro pensar que são apenas ações artisticamente calculadas.

Por fim, o cargo de policial penal. Antes que você pare de ler, supondo que já é exagero de minha parte, uso como argumento tão somente o título do livro de Sun Tzu, "A arte da guerra". Duas palavras absolutamente antagônicas (pelo menos é o que aparenta!): arte versus guerra. Então por que no ambiente prisional seria inconcebível um toque poético, sublime, contemplativo?!

Numa profissão tão penosa e malpaga, há que sentir no rosto, enquanto se vigiam as muralhas, o sol ao amanhecer. O cafezinho em seguida, no posto de comando, tem um quê de recompensa pelas horas em claro, e nesse momento, entre um gole e outro, é como se fôssemos arrebatados da prisão para o etéreo. 

Também é válido notar o fardamento, dando ao homem uma respeitável elegância e à mulher, uma beleza imponente; os brevês nas gandolas; os coturnos bem lustrados; a arma posta adequadamente no coldre ou conduzida cautelosamente com as mãos; os instrumentos de menor potencial ofensivo dispostos em seus devidos lugares no cinto tático — eis uma moldura viva, uma peça valiosíssima e genuína.

A entrada em leque no pavilhão; a varredura ágil nos espaços; a conferência de cadeados sob a proteção do colega na retaguarda; olhos em riste; ouvidos atentos; postura firme; entonação de voz meticulosamente aplicada em cada situação; tomadas de decisão no tempo exigido e com a força necessária; demandas todas atendidas de maneira coordenada e ordeira.

Expediente diurno cumprido; portões cerrados; posicionamento na guarita; sentidos aguçados; leitura sensorial alerta para detectar qualquer alteração no ambiente interno e seu entorno.

Alguns dirão que isso é "frescura". A tais indivíduos secos feito o deserto, só posso me compadecer de que tanta aridez n'alma não lhes permita sentir a brisa que pode soprar na mais árdua missão.

Nem ouse imaginar que minha vida resumiu-se a manifestações artísticas! Foram muitas lutas, perdas, traições, dores e lágrimas. A arte é, senão, o bálsamo que torna a dura existência suportável.

Flávio José Pereira da Silva [Flávio de Ostanila] é policial penal, escritor, bacharel em Direito e professor de Língua Portuguesa.

Fonte: JTNEWS

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