Remédios, Constituição e a Degola de Timat; por Maria Cecília Carnaúba

"O Estado só avança na solidificação do conteúdo democrático, e na vivência da democracia real, quando degola e subjuga o dragão do voluntarismo e da vaidade dos que agem em seu nome"

No início, era a desagregação absoluta, a colisão ininterrupta das rotas, a destruição mútua e generalizada, dizia-se na Babilônia. Neste espaço surgiu uma luz, o deus Marduk, que, ao mirar o ambiente, identificou a imagem flutuante de um pavoroso monstro marinho, era Timat, que assumia a forma de um gigantesco dragão, em plena fúria e disposição incendiária, que a tudo convertia em cinzas.

Foto: Arquivo pessoal cedido ao JTNEWSMaria Cecília Carnaúba é pesquisadora e promotora de Justiça em Alagoas
Maria Cecília Carnaúba é pesquisadora e promotora de Justiça em Alagoas

Marduk, inopinadamente, atirou-se sobre Timat e depois de sangrenta luta, arrancou-lhe a cabeça. De imediato, o espaço amorfo começou a organizar-se, alinhar as rotas, reagregar os corpos destruídos pela colisão e pelo fogo. Surgiu um ambiente novo, sem emendas, harmônico, regido pela a força ordenadora do Universo em sua potência máxima. Nasceu a vida humana, instalaram-se a concódia e a prosperidade.

Ocorre que o Tempo babilônico, personificado, era a entidade capaz de subjugar o dragão e manter a degola, entretanto, se enfraquecia progressivamente a cada impacto que lhe provocavam as ações humanas contrárias à ordem instituída pela ação de Marduk. A ordem Marduquiana se compunha de verdade, harmonia, humildade, lealdade, solidariedade, proatividade na edificação do outro e do próprio crescimento espiritual.

O Tempo, como ser ordenador, capaz de possibilitar a vida humana, só conseguia resistir a tais ferimentos durante um ano, depois disto, era inteiramente destruído. Timat estaria livre para ressurgir soberano, aniquilar Marduk e reinstalar o caos.

Entre toda a vida surgida a partir da degola, somente a vida humana vitimizava o Tempo, as demais, naturalmente, preservavam a ordem, se conduziam de modo a usufruir apenas o necessário à existência. Apenas o homem se entregava a um desejo de crescimento ilimitado, acumulativo do que não serve à existência. Para evitar que este comportamento humano matasse o Tempo, e a tragédia da desordem pusesse fim à vida, era imperioso criar um novo Tempo, a cada ano, para que este surgisse com a mesma força ordenadora nascida no instante da degola do dragão por Marduk.

Foto: Reprodução/WEBApresentado na Bíblia, o personagem Marduc integra uma geração tardia de deuses da antiga Mesopotâmia
Apresentado na Bíblia, o personagem Marduk integra uma geração tardia de deuses da antiga Mesopotâmia; e, conforme o texto, após sangrenta luta ele arrancou a cabeça de Timat

Por isso, anualmente, os babilônios realizavam a akïtu, cerimônia religiosa em que recitavam a estória da degola de Timat, esta prática fazia brilhar a luz em Marduc e criava-se o novo Tempo, que manteria a ordem por mais um ano.

A instituição da Constituição se assemelha ao ritual de criação do Tempo dos babilônios. Tal como eles, cria uma ordem normativa para possibilitar o desenvolvimento humano no universo nominado Estado. Ao invés de um ano, como na Babilônia, a Constituição brasileria marca um tempo de quatro anos, como limite de resistência de sua força normativa, ordenadora, condicionante das ações de agentes do Estado. Durante este período, espera-se que os eleitos pelo povo sejam efetivamente proativos para edificação da ordem e da justiça estabelecidas pela Constituição.

Os desvios humanos, no exercício do poder conferido pelos cargos públicos, do padrão normativo ideal, destroem a força conformadora das normas constitucionais sobre a atividade pública dos agentes do Estado. Assim como o Tempo dos babilônios se desfaz, e é preciso criar um novo, para fazer nascer a força absoluta que mantém a ordem no cosmos, também a Constituição cria tempos novos, a cada quatro anos, através das eleições que conduzem novos titulares para exercício do poder político.

A regra de troca cíclica de agentes políticos é instrumento jurídico para favorecer a mantença do pleno vigor e eficiência das normas constitucionais. Visa fortalecer a vinculação, da atividade dos agentes públicos, ao propósito de concretização do padrão ideal de ordem e justiça do Estado. Visa evitar que estes usem a estrutura pública em favor próprio e indefinidamente, os expõe à fiscalização inevitável dos sucessores.

É um dos recursos normativos de restrição ao descontrole, de alguns, sobre o impulso de crescimento individual além do necessário a existência. A falta de domínio sobre este desejo, comumente, degenera em corrupção e inviabiliza a vivência democrática.

Para seguir a lógica babilônica, as democracias não deveriam prever reeleições, seria mais adequado, à vitalidade das normas democráticas, a constante assunção de titulares novos para os postos de mando. Talvez a impossibilidade de reeleição pudesse tornar as normas constitucionais mais efetivas, aproximar a democracia idealizada, pelo sistema normativo, da democracia real, vivida pelos cidadãos.

O espaço intitulado República Federativa do Brasil, criado e ordenado pela Constituição de 1988, é fundado sobre a divisão de competências. Estas são distribuídas tanto entre os Poderes públicos: legislativo, Executivo e Judiciário, quanto entre as pessoas políticas: União, Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios.

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Congresso Nacional: palco de lutas em defesa e contra a Constituição, informação paradoxal, mas verdadeira

O exercício das atividades dos poderes públicos e da autonomia político/administrativa das pessoas políticas somente é válido se for desenvolvido dentro dos limites expressamente estabelecidos de competência. A desobediência à distribuição normativa de competências, viola o pacto federativo estruturante da democracia brasileira. O pacto federativo impõe lealdade entre os entes públicos e sua proatividade para concretização dos objetivos da democracia brasileira expressos pelso artigo 1º e 3º da Constituição.

Os agentes públicos, eleitos ou nomeados, têm a incumbência de dar cumprimento às normas constitucionais. Somente podem agir dentro dos limites fixados pelo pacto federativo. A divisão de competências, que constitui o pacto referido, é garantia de segurança do funcionamento democrático do sistema. Busca minimizar as possibilidades de uso da estrutura pública para satisfação de interesses privados. A fidelidade da atividade pública aos objetivos públicos, estabelecidos pelas normas constitucionais, é condição de sobrevivência da democracia.

As normas constitucionais de divisão de competências político/administrativas, atribuem, à União, o poder/dever de planejar e promover a defesa do interesse público, em situações de calamidade, bem como realizar a mobilização nacional para sua superação. É o que dizem os incisos XVIII, artigo 21 e XXVIII, art. 22. Trata-se de competência exclusiva da União, somente ela tem autorização constitucional para seu exercício, qualquer outra pessoa política que o fizer, incorre em usurpação de competência. Em face destas normas, o planejamento e a promoção de ações de enfrentamento da atual calamidade, decorrente da pandemia de Corona Vírus, é competência exclusiva da União.

Foto: TV ALAGOASDemonstração aleatória de medicamentos ou remédios
Demonstração aleatória de medicamentos ou remédios

A execução desta competência se realiza, primordialmente, através do Ministério da Saúde, nomeadamente por meio da aquisição de insumos, adoção de medidas para garantia de socorro hospitalar, e medicamentoso, bem como da edição de orientações sobre o procedimento a ser seguido no trato da doença inclusive providências de defesa civil e sanitárias.

Se a competência para planejamento e promoção de ações de enfrentamento de calamidades é exclusiva da União, os Estados estão proibidos de exercê-la. Diz o §1º, artigo 25, da Constituição de 1988 que se atribui, aos Estados-Membros, as competências que não lhe sejam vedadas pela própria Carta Constitucional. Então, estes podem realizar planejamentos e providências de âmbito local, desde que não diminuam a eficácia do planejamento nacional ou dificultem sua execução.

Em virtude do dever de proatividade na concretização dos objetivos de Estado, além da proibição de prejuízo à eficiência do planejamento nacional de combate às calamidades, as demais pessoas políticas estão vinculadas ao dever de cooperação para que a atividade da União alcance eficiência máxima. Os planos e ações de enfrentamento de calamidades públicas, elaborados pelos Estados-Membros e pelas demais pessoas políticas da Federação, somente são juridicamente válidos se tiverem conteúdo suplementar, do planejamento nacional, e contribuam para potencializar sua eficiência.

Condutas dos Estados-Membros que diminuem ou dificultam a execução da competência nacional de enfretamento da pandemia, violam a divisão de competências da Federação. Causam duas ofensas simultâneas: violação do pacto federativo de proatividade das pessoas políticas para concretização dos objetivos do Estado democrático Brasileiro, e usurpação de competência político-administrativa conferida exclusivamente à União. Pelas mesmas razões, caracteriza abuso de poder a ação, de qualquer agente público, que obstaculize ou diminua a eficiência dos resultados desta competência exclusiva da União.

A autarquia composta pelo Conselho Federal de Medicina e os Conselhos Regionais de medicina, integra o conjunto de entidades destinadas a execução das competências constitucionais da União. Executa a competência de supervisão da ética médica em toda República, julgamento e disciplina da classe médica. Somente aos CRMs compete o exercício do poder disciplinar e de punição de médicos no desempenho de suas profissões, além do poder Judiciário, através do devido processo legal. 

Por sua vez, os médicos devidamente registrados no Ministério de Educação e Cultura e inscritos nos Conselhos Regionais de Medicina têm direito subjetivo ao exercício de suas funções, não podem ser violados em sua autonomia.

Ações de quaisquer outras entidades públicas, pessoas políticas, Poderes Públicos ou agentes públicos, que se constituam em julgamento ou penalização de médicos, em razão do exercício de sua profissão, caracterizam usurpação de competência dos Conselhos Regionais de Medicina. Inclusive ações que ponham em causa a capacidade técnica do médico ou o uso de fármaco regularmente admitido no país pelo órgão responsável ou a escolha de tratamento específico.

A única exceção é o Judiciário, através de atuação regular. A usurpação desta competência exclusiva da União atenta contra o pacto federativo, por isso sujeita o agente ou ente públicos às reprimendas cíveis e criminais.

A imunidade parlamentar estabelecida pelo art. 53 da Constituição não socorre, o agente usurpador de competência. Esta é conferida aos parlamentares para a finalidade específica de assegurar o desempenho de suas competências constitucionais atribuídas na Sessão II da Constituição. Se o parlamentar atua no exercício de competência específica de outro Poder ou entidade federativa, a imunidade parlamentar não se aplica ele. Nesta hipótese, a imunidade perde a sua justa causa: a garantia de pleno exercício das competências do Poder Legislativo.

Por esta razão, esta norma se insere, fisicamente, entre as que versam as atribuições do Congresso Nacional e não entre as normas constitucionais de alcance geral, como as estruturantes do serviço público em geral, a exemplo do artigo 37 da Constituição. Se os parlamentares atuam fora de sua área de competência, estabelecida pela sessão II da Constituição, a imunidade parlamentar não tem incidência, por falta de justa causa.

Em face destas circunstâncias normativas, preservada a boa fé, sob hipótese alguma os médicos, devidamente registrados no Ministério de Educação e Cultura, inscritos nos Conselhos Regionais de Medicina, que tenham a anuência do paciente, podem ser impedidos, de ministrar medicamento aprovado para uso nacional, em humanos, ou de realizar tratamento médico de sua preferência.

O questionamento sobre a forma de desempenho da atividade médica somente é permitido, constitucionalmente, aos Conselhos de Medicina e ao Judiciário. Qualquer outra entidade ou agente público que o faça comete abuso de poder, por falta de competência funcional, e sujeita-se às penalidades administrativas, civis e criminais eventualmente incidentes. Esta disposição normativa é válida em qualquer situação, inclusive nas de calamidade pública como a atual pandemia de Corona Vírus.

Ademais, não se pode impor, aos médicos, dificuldades para garantir a realização de tratamentos, inclusive experimentais no que se refere à finalidade diversa da originalmente pensada para o insumo utilizado. 

Da mesma forma, autoridade pública alguma pode ser impedida de otimizar o desempenho do planejamento nacional e das providências adotadas pela União no enfrentamento de calamidades, inclusive da pandemia de Corona Vírus. Ao contrário, estão obrigadas a fazê-lo, em face do dever constitucional de proatividade Estatal para concretização dos objetivos da República Federativa do Brasil.

Sob outra perspectiva, importa ressaltar que qualquer ação tendente à redução de eficiência dos resultados do planejamento e das ações nacionais no combate à pandemia, amplificaria o sofrimento da população que se apega ao cumprimento das prescrições médicas como esperança de cura.

Neste contexto, a criação de situação de impossibilidade ou dificuldade de acesso ao tratamento ou medicamento prescritos pelo médico, por si só, impõe sofrimento emocional penoso que se acresce, desnecessariamente, ao sofrimento físico dos cidadãos. Ações deste tipo afrontam o dever de solidariedade juridicamente estabelecido através do inciso II, artigo 3º da Constituição da República.

Obstruções à autonomia do exercício da medicina, exposição de médicos à circunstâncias vexatórias em razão de suas opções técnicas de tratamento, sobretudo na atual situação de pandemia de Corona Vírus, caracterizariam atos de voluntarismo político-administrativo, abuso de poder característico das tiranias, próprias de regimes totalitários. 

Ademais, revelam fomento à cultura do medo como instrumento de subjugação popular e desagregam a estrutura democrática instituída pela Constituição Federal.

Talvez os babilônios dissessem que estas usurpações de competência agrediriam violentamente a vitalidade do “Tempo”, apressariam a ameaça de ressurgimento de Timat e a reinstalação da desagregação total onde a vida humana não resistiria. Talvez pensassem que as línguas de fogo deste monstro reduziriam a cinzas as luzes de amor ao próximo que brilham nos olhos dos seres humanos. Talvez esse povo fosse mais lúcido que nós, os modernos.

O Estado só avança na solidificação do conteúdo democrático, e na vivência da democracia real, quando degola e subjuga o dragão do voluntarismo e da vaidade dos que agem em seu nome. A degola do monstro, Timat, só acontece com reverência à suprema ordem constitucional.

Fora da ordem constitucional, reina a desagregação total, o caos. Realizemos a akïtu e criemos o “Tempo” novo.

Maria Cecília Pontes Carnaúba - é promotora de Justiça de Alagoas, mestra em Direito (UFPE), doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (PT); autora do livro “Provas Ilícitas” publicado pela Editora Saraiva, além de diversos artigos jurídico-científicos. É detentora do Blog: https://www.ceciliacarnauba.com.br

Fonte: JTNEWS

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