A insustentável leveza do serviço público

"Sempre vi o serviço público como sacerdócio. Em minha opinião, que suponho seja a opinião legal idealizada, é o servidor público a figura do Estado", declarou Andrea Negreiros

Há quatorze anos tenho o orgulho em ser Agente de Segurança Penitenciaria no Estado de São Paulo, dos quais cinco cumpri como Supervisora Técnica de Penitenciária. Nesses anos cumpridos, tive muitas oportunidades de aprendizado: trabalhei em três Penitenciárias Femininas, um Centro de Detenção Provisória Masculino de “perfil neutro” (presos em Medida Protetiva de Segurança, sem convívio com o “perfil comum”), uma Penitenciária Masculina e atualmente um Centro de Progressão Penitenciária (semiaberto). Digo com certa naturalidade – a qual não deve ser medida arrogante – que conheço muito bem o Sistema Penitenciário Paulista, seus diversos setores, suas diversas atribuições, os pontos fortes e fraquezas, as vitórias e as decepções. Foi de tudo – de refém em rebelião à Diretora de Centro de Segurança e Disciplina. De nada me arrependo, visto que tudo o que passei e passo me orgulha. Meu sentimento ao serviço público é de devoção.

Foto: Sindcop/SP"Sempre vi o serviço público como sacerdócio. Em minha opinião, que suponho seja a opinião legal idealizada, é o servidor público a figura do Estado"
"Sempre vi o serviço público como sacerdócio", diz Andrea Negreiros

E é sobre tal que meu texto se rompe: a devoção singular do serviço público. Quando ingressei na Secretaria de Administração Penitenciária – SAP, meu peito se inflou em orgulho – e nunca mais desinflou. Senti uma incrível honra no serviço público que iria prestar, sua relevância social, seu alcance, sua notoriedade. Quanta coisa pode ser feita pela sociedade na SAP: a custódia, a segurança social, a reintegração do apenado!

Sempre vi o serviço público como sacerdócio. Em minha opinião, que suponho seja a opinião legal idealizada, é o servidor público a figura do Estado. É dele que emana o poder e capacidade de atendimento aos anseios e necessidades de sua população. Dele depende que o Estado cumpra suas prerrogativas. Políticos são figuras transitórias – o sucesso real parte do servidor de carreira. De tal maneira, que o Servidor Público tem estabilidade, afinal, por vezes no desempenho de suas funções, pode contrariar interesses superiores, que vão contra as atribuições a que foi empossado; também, em  caso de descumprimento severo ou desonra de suas atribuições, pode ser demitido a bem do serviço público, sem qualquer direito trabalhista – e muitas são as exigências legais determinadas ao servidor público. Ambas, estabilidade e demissão a bem do serviço público, são mostras de que o serviço público não é um mero trabalho: é de fato sacerdócio!

Para que tal mecanismo funcione e o Estado seja de fato bem sucedido, creio que exista a dependência em duas premissas básicas: que o servidor seja austero em suas atribuições e que o controle de tais cumprimentos seja efetivo e rigoroso. Ah, a efetividade e o rigor... já fui muito dos dois. Das Unidades Prisionais em que trabalhei, apenas em uma, a Penitenciária Masculina onde fui Supervisora, vi essas premissas serem aplicadas. O rigor na exigência do cumprimento das funções, a efetividade do serviço, o controle. Por vezes antipática, sempre exausta e orgulhosamente bem sucedida no cumprimento do dever. Era o fazer e a exigência que todos fizessem. Tinha uma Diretora Geral austera e  devota, que cumpria com excelência e eterno rigor suas atribuições, razão pela qual podia exigir dos demais servidores em seu máximo. Quem não fizesse que assumisse as consequências - e de fato alguns sentiram os rigores do serviço público, suas exigências e as sequentes punições aos casos desidiosos (nunca admiti a desídia no serviço público. Ela me enoja profundamente!).

Pensei que a devoção do serviço público fosse a razão desse texto, mas parece que, ao contrário, é a desídia, minha eterna razão de asco. Ela me surpreende, choca, e está impregnada no serviço público que testemunhei e vivenciei. Os cinco anos que vivenciei na PenitenciáriaMasculina são exceções ao que geral vi nesses quatorze anos: servidores desinteressados, diretores omissos, revelia. Parece que todo mundo está cansado: o servidor não quer fazer, seu superior não quer cobrar, os diretores esquivam-se. Um não mexe com o outro, e a vida segue: Morna, estagnada, inútil. Acredito que muito por isso alguns colegas sejam acometidos de doenças, especialmente depressão: esse marasmo, esse desinteresse geral, essa falta de perspectiva. O ser humano precisa ser chacoalhado, exigido, provocado, desafiado. Não haveria, por exemplo, um atleta de excelência sem um técnico diariamente motivando e exigindo até a exaustão.

Engraçadamente, quando penso no assunto, na vida que segue em desídia e omissão, lembro das frases da personagem criada pelo autor de novelas Agnaldo Silva, o Giovanni Improta: “Então fica o dito pelo não dito, o não dito pelo dito e, como sempre, vale o escrito”; “O tempo ruge e a Sapucaí é grande!”; “Há malas que vêm de trem!”. Então penso em como muitas são as malas, em como fardo é grande, no dito pelo não dito, na falta de escrito e de mando. Engraçadamente também, minhas funções de Supervisora se encerraram quando a Diretora com quem trabalhava foi destituída da função, após dezoito anos a ocupando. Função de Diretoria na SAP não é estável, o que comprova minha idéia: para contrariar interesses superiores em razão de atribuições do cargo é necessário que o servidor público tenha estabilidade. Estabilidade, atribuições, deveres: em minha talvez ridícula opinião essa é a tríade do sucesso no serviço público!

Enfim, esse texto é como um filme europeu: nada se remata, apenas se sente! Cada um tenha a sua conclusão, suas reflexões, suas críticas – inclusive a mim. E, citando novamente o saudoso Improta, “é melhor presumir que remendar; Vou me pirulitar”. 

Dedico este texto a minha professora de redação, Maria Cristina Varjão, e ao meu professor de introdução ao texto, Luiz Vitor Martinello, ambos do colegial (ensino médio, né?!). Eternamente agradeço a capacidade de fazer o que fiz hoje – ainda quero ser um sapato que sabe andar.

Fonte: Sindcop/SP

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