Justiça

Juíza federal fura bolhas, critica Lava Jato e vive paradoxo sobre cadeias

Ao longo da carreira de 30 anos na magistratura, Simone vive o paradoxo de ajudar no funcionamento de um sistema do qual é crítica.

Foto: André Coelho | Divulgação
Simone Schreiber, juiza federal do TRF-2 (Tribunal Regional Federal da segunda região).

JTNEWS traz na íntegra a série "Mulheres no Direito", veiculada na Folha de S. Paulo na edição impressa do dia 23 de setembro de 2023, referente a juíza federal Simone Schreiber.

A busca por saberes que ultrapassam a própria vivência levaram a juíza federal do TRF-2 (Tribunal Regional Federal da 2ª Região) Simone Schreiber ao Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, ao diálogo com as Mães de Manguinhos e à escuta de quem pensa diferente.

Foto: André Coelho | Divulgação
Simone Schreiber, juiza federal do TRF-2 (Tribunal Regional Federal da segunda região).

"A gente tem que sair um pouco da nossa bolha e tentar aprender com os outros", diz.

Ao longo da carreira de 30 anos na magistratura, especializada em crimes contra o sistema financeiro e lavagem de dinheiro, Simone vive o paradoxo de ajudar no funcionamento de um sistema do qual é crítica.

"Eu tento, o máximo que eu posso, não impor pena de prisão. Isso não quer dizer que eu saia absolvendo todo mundo, mas que eu tenho alternativas que a lei autoriza."

"A gente continua lidando com essa fé que é a prisão que vai resolver. É um sistema que não funciona, caro e extremamente violador de direitos não só dos presos, mas dos seus familiares", diz.

Professora de direito processual penal na Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) desde 1995, ela se define como garantista e considera o respeito ao rito processual o dique de contenção contra abusos.

Em sua tese de doutorado na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), orientada pelo ministro Luís Roberto Barroso, do STF, Simone discutiu o princípio da presunção de inocência e como a superexposição midiática pode afetar pessoas acusadas.

Tal percepção fez dela uma crítica dos métodos da Operação Lava Jato desde o seu surgimento, quando a força-tarefa angariou apoio ao prender políticos e grandes empresários ou surpreendê-los com conduções coercitivas, o que define como inconstitucional.

"A Lava Jato foi utilizada sim como um mecanismo de perseguição de adversários políticos. Eu tenho clareza disso, acho que todos têm. É absurdo, uma distorção."

Simone se tornou revisora do braço da operação no Rio de Janeiro e, como primeira tarefa, passou a descentralizar os processos até então destinados sempre a um mesmo juiz.

A discussão que busca fazer, dentro e fora do tribunal, é sobre como o desrespeito ao devido processo legal tem efeitos profundos sobre a principal clientela do direito penal, uma população mais vulnerável, especialmente negra.

Simone admite que não sabe dizer ao certo de onde veio a sensibilidade social pela qual é destacada por amigos e colegas de profissão.

Na leitura da vez, um livro de crônicas de Clarice Lispector, ela diz ter se identificado quando a escritora conta que resolveu estudar direito sem saber por qual motivo, mas ter na questão penitenciária sua motivação.

"Quando a gente escolhe uma profissão, para além das questões práticas, de ganhar o nosso pão, eu acho que tem que ter algo mais. É uma paixão."

Paixão é o termo que Simone também usa para definir o projeto de extensão "Direito e Cinema", criado e coordenado por ela em 2018. Os olhos da magistrada brilham ao falar dos debates que reúnem alunos, profissionais do direito e ativistas sobre longas e documentários no Centro Cultural da Justiça Federal, do qual é diretora.

Do catálogo de obras, escolhidas por ela, destaca o francês "A Acusação", sobre um caso de estupro contado sob a perspectiva da vítima e do abusador, os documentários "Sem Pena", sobre a questão carcerária no Brasil, e Bagatela, sobre mulheres presas em São Paulo. "É um filme maravilhoso, está disponível no YouTube", dá a dica.

Simone defende que juízes deveriam trabalhar a partir da lógica do desencarceramento, mas sabe que a maioria de seus pares na Justiça criminal não pensa dessa forma.

Com a experiência de julgar em conjunto com outros magistrados afirma ter aprendido que é preciso manter o canal de respeito e diálogo aberto.

"Eu falo para os meus alunos que com data venia pode tudo. Você pode divergir, desde que seja respeitosamente. Ainda que um dia ou outro você tenha uma discussão com um colega do tribunal, você tem que superar e avançar. É esse o meu espírito."

Mas também encontrou colegas que pensam como ela.

"Uma associação com a qual eu me identifiquei completamente é a AJD [Associação Juízas e Juízes para a Democracia], porque acho que têm pessoas que pensam como eu e tem essa tentativa de aproximação com movimentos sociais, que é justamente para você tentar se qualificar", diz.

Quando ainda atuava na primeira instância, foi convidada pelo então juiz federal no Maranhão Flávio Dino, hoje ministro da Justiça, a ingressar na Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil), uma experiência que define como determinante na carreira.

"A gente vivia batendo perna naquele Congresso para discutir a reforma do Judiciário", conta.

A promoção para a segunda instância chegaria em 2014, pela regra da antiguidade, o que atribui ao perfil extremamente reservado e à falta de capacidade de articulação política para se promover por merecimento, mesma dificuldade que afirma ter hoje, ao ter o nome cotado para o STF.

Simone afirma se sentir muito honrada e feliz. Diz que a presença feminina deveria ser um parâmetro importante, e, mais de uma vez, aponta que essa é uma prerrogativa do presidente Lula e que ele tem nomes importantes e interessantes de homens e mulheres.

Ao ser questionada sobre a possibilidade de Flávio Dino ser o indicado, reage sorrindo: "Dino é maravilhoso, né? Tenho certeza que ele seria um excepcional ministro do Supremo".

A magistrada se tornou mãe ainda na graduação, aos 21, teve o segundo aos 23, no mestrado, e a terceira aos 38, no doutorado.

"Eu até brinco que eu não posso fazer pós-doutorado porque eu vou ter mais um filho. Brincadeira, porque nessa altura eu não posso ter mais filho nenhum. Agora eu já sou avó."

O suporte familiar foi primordial para conciliar os diferentes papéis e funções que assumiu, ciente da necessidade de ser uma mulher independente. "Eu acho que a gente tem uma culpa ancestral. Então, filho nascido, você já está sentindo culpa por tudo."

Simone afirma ter enfrentado vários episódios de machismo, às vezes sutis, em que se viu desqualificada ou desprestigiada, e que embora as mulheres tenham, em tese, condições mais paritárias no serviço público, há sim maiores dificuldades na carreira.

"Dou o exemplo das juízas federais substitutas. Muitas delas renunciam a promoções quando essas implicam em mudança de cidade ou mesmo de Estado, para não se afastarem de seus filhos. Com isso, acabam sendo ultrapassadas na carreira por juízes homens. Há inúmeros relatos desse problema na Justiça Federal."

A baixa representatividade de mulheres é um retrato disso. No TRF-2, onde atua, há 32 juízes federais, 26 homens e 6 mulheres, diz.

Para Simone, a ministra Rosa Weber coordena no CNJ (Conselho Nacional de Justiça) um debate importantíssimo sobre democratização do Judiciário ao julgar a alternância de gênero nas promoções.

"Se houvesse mais representatividade de mulheres no Judiciário, nós teríamos uma visão um pouco diferente sobre as causas em geral".

RAIO-X | SIMONE SCHREIBER, 58

É juíza federal do TRF-2 (Tribunal Regional Federal da 2ª região) e professora de direito processual penal da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro). Doutora em direito público pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), mestre em direito constitucional e teoria do Estado pela PUC-Rio e graduada em direito pela Uerj. É diretora-geral do Centro Cultural Justiça Federal, integrante da AJD (Associação Juízas e Juízes para a Democracia) e da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil).

Fonte: JTNEWS com informações da Folha de S.Paulo

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