Geral

Balanço

Sou bom contador (de histórias!)

Foto: Reprodução
Pitágoras de Samos, filósofo pré-socrático e matemático da Grécia Antiga.

Hoje é meu aniversário. Supondo que estou na metade da jornada, resolvi fazer um levantamento de ganhos e perdas, mal comparando, um tipo de receita e despesa. Geralmente, nessas ocasiões, tenho sentimento dúbio, um misto de satisfação e tristeza. Vejamos, então, ao fim desta "planilha", se, até aqui, obtive mais lucros ou prejuízos.

Foto: Reprodução
Pitágoras de Samos, filósofo pré-socrático e matemático da Grécia Antiga.

No domingo, participei do desfile de 7 de Setembro no pelotão da Polícia Penal de Oeiras; enquanto isso, em Picos, colegas de mesmo cargo entoavam, como grito de guerra, um fragmento do hino do qual sou autor. Eventos reconhecedores de minhas habilidades e quase três décadas de serviço.

Por outro lado, veio-me à memória o padecimento que tive de suportar durante o percurso: motim, rebelião, agressão, assédio, remoção, suspensão, desconto no vencimento, sindicância, processo administrativo, inquérito, banco dos réus... assassinato de reputação.

Na segunda-feira, um aluno me enviou mensagem de WhatsApp reclamando de minha ausência na escola em flagrante elogio à minha performance de professor. O que, na contramão do afago, me fez lembrar de falsas e infames acusações de que fui alvo em rede social.

Na terça-feira, a agradável companhia da namorada confrontou recordações de outros relacionamentos: mulheres que traí e as que me traíram; aquelas que deixei e outras que me abandonaram; algumas que amei, poucas que me amaram, inúmeras que me odiaram.

Na quarta-feira, consegui pagar cinco décimos das dívidas. Ocorreu-me que trabalhei bastante, e não alcancei riqueza; mas também não morri de fome apesar de nascer na miséria. Houve incalculável carência na infância e na adolescência, porém tive certas abundâncias na fase adulta: muita ingestão de doce, gordura, açúcar e álcool — as taxas... nem altas, nem baixas! (espero sobreviver até a conclusão do texto!).

Na quinta-feira, um amigo me telefonou e discorreu sobre a fé cristã. Fato que me levou a observações sobre amizade e Deus. Acerca de "amigos", tenho poucos; e entre eles, a infeliz deslealdade de um e outro. Não posso dizer que, como retribuição, lhes fui totalmente leal. No que se refere ao Criador, contemplei a crença durante o tempo suficiente para perceber que o "faça por ti, que te ajudarei" carecia da segunda oração (sob o aspecto sintático-semântico, e não o religioso!).

No dia seguinte, meu natalício, em almoço com minhas filhas, eu refletia sobre a matemática da vida. Fiquei órfão jovem; não tenho pais nem avós: respirando, sou o mais velho da sucessão. Tive um legado de penúria; contudo, no restaurante, enchia o bucho e o de minha prole a preço além do que poderia pagar a maioria das famílias do Nordeste do Brasil.

Considerando as somas e subtrações, pensei ainda no quanto tão vulnerável me largaram no mundo e no homem forte que me tornei. Não obstante a estatura e o peso, pussuo disposição para, tal qual centenas de bombas atômicas, aniquilar o mundo em defesa de minhas meninas. E embora ser pai seja "ter o coração fora do corpo", não me sinto dividido: estou multiplicado — em corpo, mente e espírito.

Viver é tão custoso, que a aritmética não bastaria para calcular. A inexatidão do existir não comporta  medição. Débito, crédito, passivo, ativo — nada tem garantia no orçamento da caminhada. Talvez o que importa seja anotar com zelo no livro da contabilidade antes que ele se feche.

Como escritor, sou bom contador (de histórias!). E nas minhas contas — ora no vermelho, ora no azul —, o meu caixa registra 50% de dor e 50% de amor. Quanto a esta "crônica-caderneta", ficcional ou real, deixo-a no bolso do cliente, meu caríssimo e imensurável leitor.

Foto: Arquivo pessoal
Flávio de Ostanila

Flávio José Pereira da Silva [Flávio de Ostanila] é policial penal, escritor, bacharel em Direito e professor de Língua Portuguesa.

Fonte: JTNEWS

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