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A mestra que vendia livros; por Maria das Graças Targino

Vender livros é uma experiência muito rica. Aprendemos a cada dia. Descobrimos facetas desconhecidas, até então, em quem nos rodeia.

Foto: Yuki Film, 2025.
A mestra que vendia livros

Peço emprestado este lindo título a todos os envolvidos em “A menina que roubava livros”, para que possa intitular “A mestra que vendia livros”. “A menina...” é um romance do escritor australiano Markus Zusak, publicado, pela primeira vez, em 2005, pela Editora Picador (Londres) e, adiante, no Brasil, pela Intrínseca. Lançado como filme, em 2013, nos Estados Unidos da América e um ano após, no Brasil, a protagonista é Liesel Meminger, uma menina que, durante a Segunda Guerra Mundial, na Alemanha nazista, sobrevive fora de Munique, lendo as obras que surrupia, uma a uma. Graças ao pai adotivo, aprende a ler e a compartilhar livros com os amigos, dentre os quais, um judeu que vive como clandestino em sua casa. 

Foto: Yuki Film, 2025.
A mestra que vendia livros

Nunca me esqueci nem do livro nem tampouco do filme. A motivação é simples: como Liesel Meminger, sempre amei livros. Sempre amei estar arrodeada de livros e não é, portanto, à toa, que me tornei, no decorrer da vida, leitora-mirim, bibliotecária, docente, escritora, revisora, tradutora e assim por diante. Só não estava no script ser vendedora ou distribuidora. Mas, hoje, assumi essa nova função, com orgulho e amor. É uma questão de coerência. A coerência que busco alcançar. Ainda criança, ouvi de meu pai que o escritor escreve para ser lido, contestado, aceito, criticado ou festejado. Ao contrário do que aconteceu com os muitos livros técnico-científicos que escrevi, cuja distribuição está sempre a cargo de grandes editoras, instituições, órgãos de classe e/ou distribuidoras, ao ingressar na literatura, tive que assumir ou ser coadjuvante da venda de meus livros.

Não é fácil. É traçar estratégias de venda. É apelar para os amigos ou companheiros de jornada, de quem, confesso, com um sorriso iluminado no rosto, sempre estão de meu lado. É deixar o orgulho de lado e partir, quase que de porta em porta, oferecendo o novo livro parido. É contar com o apoio da mídia em suas várias instâncias – impressa, radiofônica, televisiva e digital, devido ao aconchego do alunado que cresceu e não me perdeu de vista. Seguir oferecendo é o único caminho. Há muito a ser contado. Um dia, uma intelectual que nunca precisou lutar para ser reconhecida como tal, me disse cara a cara (ponto ganho): “acho ridículo você andar com essa sacola oferecendo livros”. Como resposta, ri. Aquele sorriso de paisagem quando não temos alternativa. Respondi: “que bom! Você não precisa fazê-lo [até porque não tem livros escritos]. Você não lutou, como eu, para me posicionar na sociedade e no mercado de trabalho que me aceitou e me acarinhou”. Nenhuma réplica. Papo reto.

Vender livros é uma experiência muito rica. Aprendemos a cada dia. Descobrimos facetas desconhecidas, até então, em quem nos rodeia. Há a docente universitária que passa exatas três semanas com “Memória finita”, meu último livro de crônicas, em sua posse até definir. Ao final, diz: “vou comprar. Gostei até onde li”. E há outra indecisa na história. Manda vários e vários WhatsApp falando sobre o livro. Anuncia: “vou passar o PIX, mas quero autografado”. Partindo da premissa de que uma dedicatória é, quase sempre, uma mensagem mais intimista, opto por ela. Não tarda muito e recebo novo recado: “vou desistir porque estou muito cheia de despesas”. Não contra-argumento. Não falo que o exemplar ficou “condenado” face à dedicatória. Ela sabe disto. Por que reclamar? 

E a autoridade para quem remeti um livro via correios, o que demanda o endereço completo, incluindo o Código de Endereçamento Postal? Conversa vai. Conversa vem. Enviou, por duas vezes, o nome da rua e pontos de referência – “chegou ao bairro, nem precisa chegar à rua, o carteiro vai na certa, porque sou uma pessoa pública...” Haja paciência para explicar que a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos possui normas, dentre as quais a identificação do CEP. A essas passagens unem-se outras um tanto hilárias. Alguém me manda como resposta, duas placas de venda de dois de seus imóveis, para justificar sua situação financeira! Verdade por mais incrível que possa soar. Ademais, sempre me chamou atenção o medo que as pessoas, salvo raras exceções, têm do “vendedor de livros”. Enquanto os que expõem joias em gabinetes de instituições governamentais conseguem, rapidamente, alvoroçar o ambiente, os 

autores-vendedores afastam. É como se fossem nocivos ou fatais. As pessoas vão saindo “de fininho”, inclusive, em lançamentos, quando alguns chegam literalmente a correr ou, no mínimo, a andar com rapidez num jogo oculto de “pega pra capar”, expressão de uso popular, cuja origem remonta ao ato de segurar porcos à força para castrá-los, no caso, de segurar indivíduos para lhes dar a chance de ler o mundo com mais propriedade.

Mesmo assim, bendigo a oportunidade de buscar leitores em cada canto da cidade e onde mais eles estiverem, reforçando as palavras da cronista gaúcha Martha Medeiros, que se destaca por seus poemas e romances e, sobretudo, por suas deliciosas crônicas. Ela diz: “[...] gosto do cheiro dos livros. [...] Gosto do barulho das páginas folheadas. Gosto das marcas de velhice que o livro vai ganhando. [...] Tem gente que diz que uma casa sem cortinas é uma casa nua. Eu penso o mesmo de uma casa sem livros”. Na realidade, as crônicas que eu teço com minha alma em chama tratam, literalmente, de textos sem rótulos e sem fórmulas, o que permite sua leitura a torto e a direito, sem sequência rígida e distante de qualquer engessamento. Tenho interesse precípuo em seguir o curso do mundo de uma forma menos mecânica e mais amorosa São sempre textos despretensiosos que comportam críticas, posicionamentos favoráveis, opiniões diversificadas, até porque somente um desvalido ou desvairado pode se arriscar a enunciar verdades. Quer dizer, não clamo por aceitação. É só esta vontade de compartilhar experiências e sentimentos, sentimentos e contradições, contradições e aceitação do outro (judeu clandestino ou não – dá igual), encarando não só escrita ou leitura, mas a distribuição porta a porta. Não roubo livros: escrevo e vendo livros. Sou a escritora que caminha com seus livros rio abaixo rio arriba.

Foto: Reprodução / Redes Sociais
Maria das Graças Targino

Doutora em Ciência da Informação, Universidade de Brasília, e jornalista, finalizou seu pós-doutorado junto ao Instituto Interuniversitario de Iberoamérica da Universidad de Salamanca, Espanha. Sua experiência acadêmica inclui, ainda, cursos em países, como Inglaterra, Cuba, México, França e Estados Unidos. Tem produzido artigos, capítulos e livros em ciência da informação e comunicação, enveredando pela literatura como cronista.

Fonte: JTNEWS

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