Filhos de Istambul
“Filhos de Istambul”, tradução do original “Kagittan Hayatlar”, é uma recente produção turca da OGM Pictures,entregue à Netflix em 12 de março de 2021Há crianças abandonadas, pessoas pobres morrendo na fila do transplante de rim, crianças espancadas, dependentes de drogas e chorando a falta da mãe, mães espancadas chorando a falta dos filhos, mendigos brigando entre si por pedaços de papelão encontrado na rua. A vida realmente é uma droga [...].
Bruno Carmelo
“Filhos de Istambul”, tradução do original “Kagittan Hayatlar”, é uma recente produção turca da OGM Pictures, entregue à Netflix em 12 de março de 2021, e que traz à tona um tema universal – a invisibilidade dos mais miseráveis, com ênfase para o descaso das crianças órfãs de pais vivos ou de pais mortos.
No caso, o drama se dá nas ruas escuras de Istambul, capital da Turquia, única cidade que se situa em dois continentes: metade, Europa; metade, Ásia. Poderia, no entanto, ser transportada para as ruas dos subúrbios de qualquer grande cidade brasileira, não importa se nas favelas ou nas chamadas comunidades (em linguagem politicamente correta) ou em zonas dominadas pelo tráfico de drogas ou por facções criminosas.
Sob a direção de Can Ulkay, o espectador, ao longo de 97 minutos, dificilmente consegue se distanciar do impecável roteiro de Ercan Mehmet Erdem, no qual o catador de papel e chefe de uma das cooperativas, responsável pela distribuição da renda obtida, Mehmet, encenado por Çağatay Ulusoy, encontra no carrinho de coleta de lixo do amigo Gonzi (Apicultor Ersin Aricia) o menino Ali (vivido por Emir Ali Doğrul), que, como tantas outras crianças que crescem nos bairros de Istambul, foge da violência doméstica, no caso, de um padrasto abusivo e feroz.
Com o apoio constante do amigo Tahsin (Turgay Tanülkü), Mehmet mostra-se sempre disposto a ajudar a quem precisa, apesar de ele próprio sofrer há muito tempo à espera de um transplante de rim, que teima em não vir. Ao se envolver na busca pelos pais de Ali, oito anos, o “líder do papelão” termina por se defrontar com seus próprios fantasmas de uma infância traumática e doída, apegando-se ao menino, de forma definitiva, até porque não deseja assistir à repetição de sua própria história. Juntos, compartilham momentos de encantamento, como a ida ao banho turco (referência aos famosos banhos turcos); o aniversário de Ali e um passeio à praia.
Pode-se dizer que a produção turca retrata um amontoado de homens tristes e sem afeto. Curiosamente, face à carência do amor materno, os personagens que aparecem ao longo do drama forjam uma figura única como se fora um emaranhado de subjetividades que se encontram na complexidade formada por corações afetados por profunda tristeza e infelicidade.
São sempre homens. Homens que negligenciam o amor. Homens que negam sua sensualidade. Homens que repudiam sua sexualidade. Não há desejo amoroso. Não há resquícios de romance no ar. Talvez, isto explique o fato de a tradução brasileira fugir do título original e, também, do nome em inglês “Paper Lives” para adotar a expressão “Filhos de Istambul”, numa denúncia sutil de que, na ausência da família e/ou dos pais, os meninos transformam-se em filhos das ruas da capital turca, em especial, do chamado “Beco das Adversidades”, por onde vagueiam dia e noite ou noite e dia, no meio da indigência e da miséria, ambas disfarçadas pela beleza de danças e de músicas locais / regionais / nacionais.
Na verdade, a grande surpresa é exatamente a grandiosidade criada não apenas pela trilha musical quanto pela fotografia, a cargo de Serkan Güler. Este transmuta o interior sombrio e a imundície dos cortiços num mundo de cores. Frente ao transcurso do lilás ao azul, o amarelo incandescente das lâmpadas noturnas das vielas alaranjadas ilumina, por frestas minúsculas, a oficina de Mehmet, ao tempo em que uma bizarra sauna reservada ao banho público de cidadãos dignos de compaixão aparece como discreto santuário.
Eis a capital Istambul multicolorida e bela em seus recantos – do passeio pelo misterioso Estreito de Bósforo, que liga o Mar Negro ao Mar de Mármara, até seus bairros mais miseráveis.
Decerto, o diretor Can Ulkay repete o mote que aparece no início do filme – “onde todos choram, o riso acaba sendo cruel”. Isto é, expõe a dura vida dos catadores e das crianças abandonadas, mas impõe a beleza e o riso como armaduras diante da realidade. Os filhos das ruas e vielas devem sobreviver, não importa o sofrimento a eles imposto. Assim, lamenta a miséria, mas não a confronta.
Nesse momento, “Filhos de Istambul” assume, como alguns críticos denunciam, a exemplo de Bruno Carmelo, um olhar meramente piedoso: “Há crianças abandonadas, pessoas pobres morrendo na fila do transplante de rim, crianças espancadas, dependentes de drogas e chorando a falta da mãe, mães espancadas chorando a falta dos filhos, mendigos brigando entre si por pedaços de papelão encontrado na rua. A vida realmente é uma droga [...]”. Porém, como diz Mehmet numa de suas falas: “Morrer não é o problema. Mas e os sonhos que temos?”
Fontes:
CARMELO, Bruno. Filhos de Istambul: crítica. Disponível em: https://www.papodecinema. com.br/filmes/filhos-de-istambul. Acesso em: 13 jun. 2021.
NETFLIX. Filhos de Istambul. Disponível em: https://www.netflix.com/br/title/81334946. Acesso em: 12 jun. 2021.
*Maria das Graças Targino é jornalista e pós-doutora em jornalismo pela Universidad de Salamanca / Instituto de Iberoamérica, [email protected]
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